Vista de Baependi – Data Provável 1870 Foto: Arquivo Público Mineiro

terça-feira, 10 de abril de 2012

REVISTA VEJA - 1969 - SELEÇÃO BRASILEIRA


Reportagens
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REVISTA VEJA                     27 de agosto de 1969
O futebol novo
   
Lápis e papel na mão, o jornalista paraguaio aproximou-se de João Saldanha levando a pergunta preparada: "O time já está escalado?" Cansado, depois de quase 22 horas de aviões e aeroportos para ir de Caracas a Assunção, Saldanha respondeu: "Está escalado, sim. Há mais de quatro meses. Para ser exato: está escalado desde fevereiro". Meio desorientado, o jornalista paraguaio saiu para um lado, encostou-se junto a um grupo de jornalistas brasileiros e, ainda perplexo, perguntou: "Desde quando a Seleção do Brasil está treinando?"
Para o espanto do jornalista paraguaio e para a alegre surpresa da própria torcida brasileira, que vê a Seleção entrar no caminho da Copa, a explicação é uma só: muita coisa mudou no futebol brasileiro. Daquele futebol, enfeitado de títulos, que não soube carregar as próprias glórias e fracassou na Inglaterra em 1966, restaram estranhamente vários jogadores e, com eles, uma grande lição de humildade. Mas, o que mudou no futebol brasileiro, se oito titulares do time de Saldanha (Carlos Alberto, Djalma Dias, Rildo, Gérson, Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu) estavam entre os convocados de 1966? A Seleção do Brasil foi o bolo principal de uma grande festa - a Copa do Mundo. Cada clube, dirigente ou Estado sempre procurou tirar a fatia maior. Quando os brasileiros compareceram na qualidade de convidados especiais, como em 1958 e 1962, tudo terminou bem. Mas, quando os ingleses resolveram organizar a festa para si mesmos, o resultado para os brasileiros foi uma terrível indigestão - de cujos efeitos muita gente se lamenta ainda hoje. A primeira mudança começou aí. Perdido o tri, descobriu-se que era falsa a idéia de que bastavam onze brasileiros para arrasar qualquer adversário, decretou-se o fim dos regionalismos e até hoje ninguém se preocupou em contar quantos paulistas e quantos cariocas existem na seleção de Saldanha. Este time, que está ganhando as eliminatórias para ir ao México em 1970, pode não ser perfeito. Mas é um time que traz uma nova mentalidade para o futebol brasileiro. Nele não há lugar para estrelas ou vedetes: Pelé, o transcendental Pelé, aceita deliberadamente uma função tática quase incompatível com as suas glórias, em favor do conjunto, da vitória.
No momento em que Pelé dá exemplos desse tipo, o mínimo que se pode esperar dos outros jogadores é que sejam capazes de fazer o mesmo. Tudo isso por quê? Há uma razão aparentemente simples: a inconstância na escalação faz do jogador um homem geralmente inseguro. É segurança, acima de tudo, o que eles mais procuram num treinador. Foi isto que todos acharam em Saldanha, desde o momento em que foi chamado, pois uma de suas primeiras decisões foi anunciar o time e os reservas.
Quando perguntaram a Pelé a diferença entre a Seleção de 1958 e a de 1966 ele respondeu: "Em 1958, quem estava no banco de reservas queria estar no time, jogando. Em 1966, quem estava jogando queria estar no banco de reservas".
No barulho da placa negra de madeira queimada, balançando ao vento e rangendo com suas letras brancas, onde se lia: Hotel Lynm (concentração da Seleção Brasileira em 1966), e no rosto dos jogadores vencidos, depois da derrota derradeira contra Portugal, estavam o clima e a expressão que andara com eles por cem dias: o medo.
Pelas águas de Lambari e Caxambu, pelos morros de Teresópolis e Serra Negra, pelo sol de Espanha, o frio da Escócia e da Suécia, até as tardes negras de Liverpool, lugares por onde passou o circo do futebol brasileiro no seu roteiro do tri, procurou-se uma definição para a seleção de Carlos Nascimento e Vicente Feola. Falou-se em seleção-tergal, que senta e levanta e não amarrota em tantas viagens. Falou-se mesmo en seleção-de-mentira, ou de brincadeira por ter sido chamada no dia 1º de abril. No fim descobriu-se que ela era simplesmente a seleção-do-medo, otimista nas declarações dos cartolas, e cheia de pavor nas atitudes dos seus jogadores, nem titulares nem reservas.
A Comissão Técnica de quinze nomes começou a perder o Tri no dia da convocação: chamou 45 jogadores. Começou a perder no exagero das convocações e até na piada de ter convocado o Ditão errado. Na lista estava escrito Gilberto Freitas Nascimento, o Ditão do Flamengo, quarto zagueiro, ruim de bola. Na cabeça dos técnicos da Comissão estava Geraldo Freitas Nascimento, o Ditão do Corinthians, valente zagueiro central. Com 45 jogadores, carregados de uma estância mineral para outra, a Comissão Técnica jamais conseguiu armar um time de onze. De Lambari a Liverpool, os homens da Seleção foram as cartas de um estranho baralho, mexido demais, manipulados e misturados até a exaustão, à procura de combinações que nunca deram certo. Entre viagens, discursos de prefeitos, desfiles e homenagens, houve o telegrama de um torcedor de Silvianópolis (MG), endereçado a Carlos Nascimento e que dizia simplesmente: "Remember 1950". Mas, na época, era mais importante levar a delegação para visitar a milagreira Nhá Chica de Baependi, carregando uma faixa com estes dizeres: "Nhá Chica, ajude esses rapazes a trazer o tri para o Brasil".
Ao assumir o cargo de técnico da Seleção, Saldanha assumiu também, deliberadamente ou não, funções que antes cabiam exclusivamente aos cartolas. Foi ele quem escolheu os lugares de concentração em Bogotá, Caracas e Assunção. E quando lhe perguntaram onde a Seleção ia treinar antes de viajar, ele respondeu: "O importante não é achar um lugar especial para a Seleção treinar. O importante é achar um campo bom, onde a bola corra e os jogadores não torçam o pé".
Na frase de Saldanha está também outra de suas preocupações: em qualquer Seleção, a parte mais importante é o jogador. A filosofia é até elementar: quando tudo está bem com os jogadores, tudo está bem com a Seleção. Uma prova disso: em Assunção, Saldanha surpreendeu um brasileiro vendendo objetos importados aos jogadores, dentro da concentração. Não disse nada. No dia seguinte, o vendedor apareceu novamente. Saldanha parou-o na porta: "Os jogadores estão muito satisfeitos com o que compraram. Já não precisam mais de nada. Assim, você pode ir embora".
O medo que acompanhou a Seleção de 1966, nascido da incerteza de ficar ou ser cortado, provocou  uma briga entre Silva e Fábio, outra entre Manga e Ditão, e contagiou o próprio treinador Feola, que perdeu a paciência depois de um jogo contra o País de Gales em Minas, no dia dos primeiros cortes: "Não sei de nada. Não adianta me perguntarem de cortes, nomes, números, nada. Isto aqui é um treino, não é a final da Copa do Mundo". Comentário feito por Gérson, depois desse jogo: "Acho que corri 360 minutos nessa partida. Mas vai ser sempre assim, pelo menos enquanto nao resolverem essa história de cortes e não ficarem apenas os 22 que vão a Londres".
Enquanto os nomes não saíam, a Seleção continuava viajando, e mudando a cada treino. Feola tentava justificar essas mudanças: "As alterações no time significam apenas a preocupação de observar os jogadores. É preciso que todos saibam disso, senão vão pensar que estou ficando maluco. Há jogadores que treinam bem e saem do time". Carlos Nascimento repetia que eram os jogadores que se eliminavam, dentro de campo.
A verdade é que a eliminação vinha de fora para dentro do campo de intranqüilidade criado pelo Comissão Técnica. Nas reuniões para corte de jogadores, todos os membros da Comissão Técnica apresentavam seus relatórios. Carlos Nascimento reunia os relatórios, via os nomes coincidentes e anunciava a decisão final.
Foi assim que surgiu a lista dos treze jogadores cortados na véspera do embarque para a Europa (entre eles Carlos Alberto, Djalma Dias e Paulo Borges - homens de Saldanha).
Sem mágicas, João Saldanha procurou simplificar o processo: "Bem que o Brasil tem mais de quarenta jogadores que podem ser chamados para a Seleção. Acontece que em campo só entram onze. Logo, não preciso mais do que 22 - onze titulares, onze reservas". Tratou logo de definir quem é titular, quem é reserva e ganhou a confiança de todos, justamente por ser um homem sem segredos. Diz Gérson, hoje: "Vocês sabem quem é que mais me incentiva nessa Seleção? O Rivelino. E eu posso dizer de coração: se ele entrar no time amanhã, eu vou torcer por ele, porque somos um grupo muito unido - o objetivo de todos é o mesmo. Duvido que isso acontecesse em 1966. Naquele tempo, o ambiente era péssimo. Nunca vi tanta desunião".
Arrasado pela imprensa por causa da decisão de levar à Europa 27 jogadores (cinco a mais do limite de inscrição), Feola desabafou: "Na hora das críticas eu sou o alvo de todos. Se não falo nada, dizem que estou dormindo. Se falo, dizem que estou falando demais. Se fico quieto, dizem que não mando nada. Se não mando, por que não criticam os que mandam?"
Feola tinha razão: a decisão de levar cinco jogadores a mais (para cortá-los poucos dias antes de a Copa começar) não era sua.
Problema desse tipo já não acontece com a Seleção atual. Saldanha assumiu toda a responsabilidade pelos jogadores convocados. A sua lista saiu sem nenhuma consulta a qualquer membro da cúpula da CBD. Alterar essa relação (fato que pode acontecer depois das eliminatórias) é função exclusivamente sua. Ninguém se intromete também na escalação do time. Isso, por um lado, significa dar muita força a um homem só mas por outro evita o trabalho de palpiteiros, como o sueco Gunnar Goransson, que, vestido com o uniforme da CBD, reunia a imprensa na Suécia - última exibição do circo antes da Inglaterra - para declarar: "Na estréia da Copa, o ataque do Brasil deve ser este: Jair, Alcindo, Pelé e Amarildo. Mas Amarildo não está bem e há possibilidade de Pelé entrar na ponta-esquerda".
Desembarcando em Madri, onde a delegação tinha chegado voando pelo mesmo DC-8 "Bandeirante Manuel de Borba Gato", que havia levado a Seleção à Suécia em 1958 e ao Chile em 1962 (pilotado pelo mesmo Capitão George Bungner, que, como das vezes anteriores, foi obrigado a deixar crescer barba e cavanhaque), João Havelange declarava: "Ninguém está mais preparado do que nós. No dia da estréia em Liverpool, teremos uma bagagem de trinta jogos-treinos. Nenhuma equipe começou a trabalhar tão cedo quanto o Brasil".
Entre a sentença de Havelange e uma frase de Pelé, ainda em Madri, depois do jogo Brasil 5, Atlético 3, havia a diferença da teoria para a prática: "A verdade é que ainda não temos uma seleção base".
Da Espanha, passando pela Escócia, a Seleção chegou à Suécia para um festival de jogos. Sempre acompanhada por uma multidão de cartolas, especialistas em dar festas (uma delas no próprio hotel em que os jogadores estavam hospedados, à qual eles não puderam comparecer, assim como não puderam dormir por causa do barulho).
Na Inglaterra, para os jogadores, a Comissão Técnica reservou um hotel pequeno e feio, que não ficava perto nem do campo de treino, nem do campo de jogo. Enquanto isso, João Havelange, acompanhado de vários cartolas, hospedava-se no mais luxuoso hotel de Manchester.
De 1966 a 1969, a mentalidade dos cartolas pode não ter mudado muito. Mas já experimentou uma evolução até certo ponto animadora: em Assunção, Antônio do Passo, chefe da delegação, prontificou-se a dormir no quarto de menor conforto da concentração, no Residencial Bonanza.
O jornalista Armando Nogueira cita o jogador Gérson como exemplo da mudança do Brasil de 1966 para o de agora: "Há uma diferença brutal entre o Gérson, jogador consciente de hoje, e o Gérson, rebelde e inconseqüente de 1966. O homem é o mesmo. O ambiente é que mudou". A responsabilidade de Gérson parece ser a responsabilidade de todo o time: eles estão decididos a ganhar a Copa do Mundo. E como sabem que sem preparo ninguém ganha a Copa - é ainda Armando Nogueira quem diz -, todos se esforçam. Uma prova disso é que, em termos de condição física, a Seleção está perto da perfeição. Na tática, o próprio Saldanha confessa que seu time não tem nenhuma inovação: "Futebol moderno é simples. Porque o ataque goza da vantagem da iniciativa, de chegar à defesa com a bola dominada, de contar com jogadores mais habilidosos, é preciso ter mais gente para defender. É isso que tento fazer. Em conseqüência, a necessidade de marcação é absolutamente importante. É básico, então, ter mais jogadores na defesa e menos no ataque sem perder o poder ofensivo. Para os que pensam que isso é uma contradição, digo que meus homens de ataque são Jair, Tostão, Pelé e Edu. Não concordo com os que dizem que a linha de zagueiros continua burra, ou mais burra ainda. É que para muitos só existe o líbero quando ele pode ser visualizado. Acontece que nesta Seleção o líbero pode tanto estar atrás, como pode estar dando cobertura a Rildo ou a Carlos Alberto, nas laterais. É uma simples equação matemática: se o adversário ataca com três e você tem quatro para defender, é lógico que sobra um". Saldanha pode lutar por suas idéias com todo entusiasmo, mas nos seus contatos com os jogadores tem mostrado uma qualidade fundamental: não força ninguém a decorar sua cartilha. Durante os jogos, diz suas observações e aceita as sugestões dos jogadores (o que é um meio de fazê-los mais responsáveis pelo resultado). Definiu tudo numa frase: "Nas vitórias, ou nas derrotas, a participação do técnico é apenas de 10%. Os outros 90% são mesmo dos jogadores, que parecem estar atingindo agora o mais alto grau de sua consciência profissional, num reflexo dos campeonatos regionais, onde os times dirigidos profissionalmente sempre ganham (Santos, Cruzeiro, Botafogo, Grêmio, Bahia)". O jogador de futebol deve ter compreendido que não é apenas o título mas o seu próprio futuro que entra em jogo numa Copa do Mundo. E essa profissionalização chegou à própria cúpula do futebol brasileiro, que prometeu aos jogadores a cota do jogo com o Atlético. Humildes, às vezes mergulhados até num estranho silêncio, os cartolas têm-se colocado no seu devido lugar, isto é, de lado.
Tudo irá bem e terminará bem, se ninguém sofrer uma recaída.

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