Vista de Baependi – Data Provável 1870 Foto: Arquivo Público Mineiro

quinta-feira, 2 de junho de 2011

CRÔNICA ESPECIAL: BAEPENDI

Publicado no Noticiarama em 29/11/2010 

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010


CRÔNICA ESPECIAL: BAEPENDI




Tenho muitas lembranças de Baependi entre meus três e seis anos de idade. Naquela época, meu pai recebera um convite do Miguelzinho Salomé para conhecer as reformas que fizera no Hotel Central.
O hoteleiro expunha em carta, que trazia no envelope a fachada do hotel, todas as benfeitorias introduzidas em seu estabelecimento. Aproveitando a oferta, minha mãe foi passar uns dias em Baependi comigo e com meu irmão acima de mim.
O povo e a cidade cativaram-na pelo carinho e amabilidade que nos dispensaram, fazendo-a colocar em sua agenda voltar anualmente ao sul de Minas para rever os amigos e descansar da lida de dona de casa, o que aconteceu nos anos seguintes.
Eu estava com três anos de idade. As lembranças que tenho são bem nítidas e aparecem-me como se folheasse um álbum de retratos. Lá estão o Miguelzinho, sempre de colete e paletó brancos, e a família, Zulmira, César, Clarice, Wilson, Nelson, Zezé e a Neide, que era minha companheirinha nas brincadeiras de comadres.
Havia um armário pequenino, embutido na parede de um dos quartos do hotel, que servia de casa de bonecas. Era meu xodó, como gostava de abrir aquela porta mágica e encontrar bonecas, caminhas, armários, etc. A filha mais velha, Esnaide (não sei se escrevi corretamente), era casada com o Zé Armelin, dentista que tinha seu consultório no próprio corpo do hotel, porém na construção mais antiga que dava para a ladeira que ia para a Capelinha da Nhá Chica.
Naquela época era mesmo uma “capelinha”. O casal morava na saída da cidade, com a linha do trem passando bem em frente. Eles tinham um cão policial, o Rex, que os acompanhava até o hotel levando jornal ou revista na boca: era o próprio “rim-tim-tim”.
Perto da casa deles, também na saída da cidade, só que do outro lado da rua, ficava a Santa Casa. Era um prédio antigo, muito lindo, com jardim na frente. Nunca soube por que foi demolida. O Hotel Central ostentava uma águia de asas abertas encimando sua fachada. No andar superior havia uma varanda lateral de onde se avistava, de um lado a estação férrea , e do outro, bem ao fundo, um campo onde uma vez vi parqueado um avião, que era um tremendo “teco-teco”.
Disseram-me que foi a época em que se cogitou fazer um aeroporto para Caxambu mas que a idéia abortou porque aquela estância evitou partilhar o campo com a vizinha. Com a Neide aprendi que varanda era “alpendre”, termo desconhecido para mim, até então.
O César tinha uma farmácia e fazia parte de um conjunto musical, onde tocava clarineta. O garçom do hotel chamava Coelho e era um exímio equilibrista trazendo várias travessas distribuídas pelos braços e mãos na hora das refeições.
Uma coisa que me apavorava, e tenho a impressão que ainda hoje me assustaria, eram os grupos e danças dos “congados”. Aqueles chapéus com cacos de espelhos refletindo a luz do sol, o barulho dos tambores, os cantos, os pulos, as cabriolas, os palhaços, tudo me amedrontava e, na primeira vez em que os vi, e que estava sozinha brincando na pracinha, tive tanto medo que por pouco não fiz xixi ali mesmo.
O pároco era o padre Ambrósio que tinha um cavalo tordilho chamado “Queimado”. Sua casa ficava onde é a Pousada São Miguel. No quintal, um automóvel velho, cheio de mato dentro, servia de morada a um bando de coelhinhos; era uma farra alimentá-los com cenouras.
Ao lado da casa paroquial havia o Hotel Bortoni, com d.Iva, e a sede da Telefônica. Era um prédio simples, colonial, e tenho uma foto da fachada onde meu irmão e eu aparecemos sentados no degrau da entrada. Entre os personagens folclóricos de minhas lembranças aparecem o Jacó, preto que ia à frente das procissões soltando foguetes; a Surucucu, preta que andava com um “porrete” na mão, ameaçando os moleques que debochavam dela; o Zé Bobo, que não falava e apenas balbuciava alguns fonemas; andava a cidade toda levando pêssegos nos bolsos que oferecia em troca de alguns níqueis.
Pegado ao Hotel Central ficava a Cadeia, prédio lindo, construção centenária. Sua porta estava sempre aberta e era um convite para que eu entrasse quando escapulia pela porta do hotel. Conversava com todos os presos, subia pela grade das portas e eles me ajudavam a entrar na cela passando-me pela abertura por onde eram entregues as refeições. Aqueles homens brincavam comigo, contavam histórias, faziam brinquedos com sarrafos e rolos de serpentinas para mim e muitas vezes cantaram e me ninaram num cochilinho meu.
O Meritíssimo Juiz da cidade era o dr.Brotero, amigo de minha família há longos anos, e dizia para a mamãe proibir meus passeios à cadeia porque os presos dali eram assassinos perigosos. Mas eu conseguia driblar a vigilância materna e adorava visitar meus amigos encarcerados. Comigo eles eram carinhosos e guardavam alguma fruta ou doce, que recebiam nas visitas dos familiares, para oferecer-me.
O coração e a memória são maravilhosos: ele, seleciona o fato e ela, guarda por décadas nossas vivências reativando-as, perfeitas, para que, tempos decorridos, possamos voltar a momentos queridos de nossa vida. E assim, vejo o Rozendo e o Hermes Pena, o Tatá e a Jacy com seu cavalo “Alecrim”, o Antonio, namorado e depois marido da Clarice, a família da Jurema Pelúcio, a Conceição do “Fecha Nunca” com sua filha, Lelé, que era afilhada de minha mãe, o Paulinho Pelúcio e seu cavalo chamado “ Dólar”, o Caputo, a Mingui Mangia e família, o dr.Hugo, a grande amiga de minha mãe, Rosinha Abraão, que criava o sobrinho Ronaldo e moravam numa casa no alto, na ladeira ao lado do Hotel Central, toda a família do dr.Brotero, um senhor que eu achava engraçado porque o sobrenome era “Gaita”, a Arminda, a Lulu e o professor Divino, e muita gente e fatos que acabariam virando um livro em vez de uma crônica. São muitas as recordações daqueles verões que passei em Baependi.
Mas como diz a frase “a primeira vez a gente nunca esquece” vou terminar o artigo relatando o seguinte: fui alfabetizada em língua francesa e tive dificuldade quando comecei a ler palavras em português; não conseguia entender o que lia.
Certa vez, encontrei em cima da mesa de jantar de minha casa o jornalzinho que mamãe recebia de Baependi, mandado pelo sr. Mário Lara e sua mulher, d.Florisbela. Não havia ninguém por perto e peguei o papel para ver o que dizia. Aos trancos e barrancos fui soletrando O- PA-TRI- O-TA, O Patriota. Entendi o que lera; foi a primeira palavra que li e entendi; foi a minha primeira vez... e a gente nunca esqueceu.

Autora: Maria de Lourdes Lemos
Rio, 27.11.2010

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