Reportagens
REVISTA VEJA 27 de agosto de 1969
O futebol novo
Lápis e papel na mão, o jornalista paraguaio aproximou-se de João
Saldanha levando a pergunta preparada: "O time já está escalado?"
Cansado, depois de quase 22 horas de aviões e aeroportos para ir de Caracas a
Assunção, Saldanha respondeu: "Está escalado, sim. Há mais de quatro
meses. Para ser exato: está escalado desde fevereiro". Meio desorientado,
o jornalista paraguaio saiu para um lado, encostou-se junto a um grupo de
jornalistas brasileiros e, ainda perplexo, perguntou: "Desde quando a Seleção
do Brasil está treinando?"
Para o espanto do jornalista paraguaio e para a alegre surpresa da
própria torcida brasileira, que vê a Seleção entrar no caminho da Copa, a
explicação é uma só: muita coisa mudou no futebol brasileiro. Daquele futebol,
enfeitado de títulos, que não soube carregar as próprias glórias e fracassou na
Inglaterra em 1966, restaram estranhamente vários jogadores e, com eles, uma
grande lição de humildade. Mas, o que mudou no futebol brasileiro, se oito
titulares do time de Saldanha (Carlos Alberto, Djalma Dias, Rildo, Gérson,
Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu) estavam entre os convocados de 1966? A Seleção
do Brasil foi o bolo principal de uma grande festa - a Copa do Mundo. Cada
clube, dirigente ou Estado sempre procurou tirar a fatia maior. Quando os
brasileiros compareceram na qualidade de convidados especiais, como em 1958 e
1962, tudo terminou bem. Mas, quando os ingleses resolveram organizar a festa
para si mesmos, o resultado para os brasileiros foi uma terrível indigestão -
de cujos efeitos muita gente se lamenta ainda hoje. A primeira mudança começou
aí. Perdido o tri, descobriu-se que era falsa a idéia de que bastavam onze
brasileiros para arrasar qualquer adversário, decretou-se o fim dos
regionalismos e até hoje ninguém se preocupou em contar quantos paulistas e
quantos cariocas existem na seleção de Saldanha. Este time, que está ganhando
as eliminatórias para ir ao México em 1970, pode não ser perfeito. Mas é um
time que traz uma nova mentalidade para o futebol brasileiro. Nele não há lugar
para estrelas ou vedetes: Pelé, o transcendental Pelé, aceita deliberadamente
uma função tática quase incompatível com as suas glórias, em favor do conjunto,
da vitória.
No momento em que Pelé dá exemplos desse tipo, o mínimo que se pode
esperar dos outros jogadores é que sejam capazes de fazer o mesmo. Tudo isso
por quê? Há uma razão aparentemente simples: a inconstância na escalação faz do
jogador um homem geralmente inseguro. É segurança, acima de tudo, o que eles
mais procuram num treinador. Foi isto que todos acharam em Saldanha, desde o
momento em que foi chamado, pois uma de suas primeiras decisões foi anunciar o
time e os reservas.
Quando perguntaram a Pelé a diferença entre a Seleção de 1958 e a de
1966 ele respondeu: "Em 1958, quem estava no banco de reservas queria
estar no time, jogando. Em 1966, quem estava jogando queria estar no banco de
reservas".
No barulho da placa negra de madeira queimada, balançando ao vento e
rangendo com suas letras brancas, onde se lia: Hotel Lynm (concentração da Seleção
Brasileira em 1966), e no rosto dos jogadores vencidos, depois da derrota
derradeira contra Portugal, estavam o clima e a expressão que andara com eles
por cem dias: o medo.
Pelas águas de Lambari e Caxambu, pelos morros de Teresópolis e Serra
Negra, pelo sol de Espanha, o frio da Escócia e da Suécia, até as tardes negras
de Liverpool, lugares por onde passou o circo do futebol brasileiro no seu
roteiro do tri, procurou-se uma definição para a seleção de Carlos Nascimento e
Vicente Feola. Falou-se em seleção-tergal, que senta e levanta e não amarrota
em tantas viagens. Falou-se mesmo en seleção-de-mentira, ou de brincadeira por
ter sido chamada no dia 1º de abril. No fim descobriu-se que ela era
simplesmente a seleção-do-medo, otimista nas declarações dos cartolas, e cheia
de pavor nas atitudes dos seus jogadores, nem titulares nem reservas.
A Comissão Técnica de quinze nomes começou a perder o Tri no dia da
convocação: chamou 45 jogadores. Começou a perder no exagero das convocações e
até na piada de ter convocado o Ditão errado. Na lista estava escrito Gilberto
Freitas Nascimento, o Ditão do Flamengo, quarto zagueiro, ruim de bola. Na
cabeça dos técnicos da Comissão estava Geraldo Freitas Nascimento, o Ditão do
Corinthians, valente zagueiro central. Com 45 jogadores, carregados de uma
estância mineral para outra, a Comissão Técnica jamais conseguiu armar um time
de onze. De Lambari a Liverpool, os homens da Seleção foram as cartas de um
estranho baralho, mexido demais, manipulados e misturados até a exaustão, à
procura de combinações que nunca deram certo. Entre viagens, discursos de
prefeitos, desfiles e homenagens, houve o telegrama de um torcedor de
Silvianópolis (MG), endereçado a Carlos Nascimento e que dizia simplesmente:
"Remember 1950". Mas, na
época, era mais importante levar a delegação para visitar a milagreira Nhá
Chica de Baependi, carregando uma faixa com estes dizeres: "Nhá Chica,
ajude esses rapazes a trazer o tri para o Brasil".
Ao assumir o cargo de técnico da Seleção, Saldanha assumiu também,
deliberadamente ou não, funções que antes cabiam exclusivamente aos cartolas.
Foi ele quem escolheu os lugares de concentração em Bogotá, Caracas e Assunção.
E quando lhe perguntaram onde a Seleção ia treinar antes de viajar, ele
respondeu: "O importante não é achar um lugar especial para a Seleção
treinar. O importante é achar um campo bom, onde a bola corra e os jogadores
não torçam o pé".
Na frase de Saldanha está também outra de suas preocupações: em qualquer
Seleção, a parte mais importante é o jogador. A filosofia é até elementar:
quando tudo está bem com os jogadores, tudo está bem com a Seleção. Uma prova
disso: em Assunção, Saldanha surpreendeu um brasileiro vendendo objetos
importados aos jogadores, dentro da concentração. Não disse nada. No dia
seguinte, o vendedor apareceu novamente. Saldanha parou-o na porta: "Os
jogadores estão muito satisfeitos com o que compraram. Já não precisam mais de
nada. Assim, você pode ir embora".
O medo que acompanhou a Seleção de 1966, nascido da incerteza de ficar
ou ser cortado, provocou uma briga entre Silva e Fábio, outra entre Manga
e Ditão, e contagiou o próprio treinador Feola, que perdeu a paciência depois
de um jogo contra o País de Gales em Minas, no dia dos primeiros cortes:
"Não sei de nada. Não adianta me perguntarem de cortes, nomes, números,
nada. Isto aqui é um treino, não é a final da Copa do Mundo". Comentário
feito por Gérson, depois desse jogo: "Acho que corri 360 minutos nessa
partida. Mas vai ser sempre assim, pelo menos enquanto nao resolverem essa
história de cortes e não ficarem apenas os 22 que vão a Londres".
Enquanto os nomes não saíam, a Seleção continuava viajando, e mudando a
cada treino. Feola tentava justificar essas mudanças: "As alterações no
time significam apenas a preocupação de observar os jogadores. É preciso que
todos saibam disso, senão vão pensar que estou ficando maluco. Há jogadores que
treinam bem e saem do time". Carlos Nascimento repetia que eram os
jogadores que se eliminavam, dentro de campo.
A verdade é que a eliminação vinha de fora para dentro do campo de
intranqüilidade criado pelo Comissão Técnica. Nas reuniões para corte de
jogadores, todos os membros da Comissão Técnica apresentavam seus relatórios.
Carlos Nascimento reunia os relatórios, via os nomes coincidentes e anunciava a
decisão final.
Foi assim que surgiu a lista dos treze jogadores cortados na véspera do
embarque para a Europa (entre eles Carlos Alberto, Djalma Dias e Paulo Borges -
homens de Saldanha).
Sem mágicas, João Saldanha procurou simplificar o processo: "Bem
que o Brasil tem mais de quarenta jogadores que podem ser chamados para a
Seleção. Acontece que em campo só entram onze. Logo, não preciso mais do que 22
- onze titulares, onze reservas". Tratou logo de definir quem é titular,
quem é reserva e ganhou a confiança de todos, justamente por ser um homem sem
segredos. Diz Gérson, hoje: "Vocês sabem quem é que mais me incentiva
nessa Seleção? O Rivelino. E eu posso dizer de coração: se ele entrar no time
amanhã, eu vou torcer por ele, porque somos um grupo muito unido - o objetivo
de todos é o mesmo. Duvido que isso acontecesse em 1966. Naquele tempo, o
ambiente era péssimo. Nunca vi tanta desunião".
Arrasado pela imprensa por causa da decisão de levar à Europa 27
jogadores (cinco a mais do limite de inscrição), Feola desabafou: "Na hora
das críticas eu sou o alvo de todos. Se não falo nada, dizem que estou
dormindo. Se falo, dizem que estou falando demais. Se fico quieto, dizem que
não mando nada. Se não mando, por que não criticam os que mandam?"
Feola tinha razão: a decisão de levar cinco jogadores a mais (para
cortá-los poucos dias antes de a Copa começar) não era sua.
Problema desse tipo já não acontece com a Seleção atual. Saldanha
assumiu toda a responsabilidade pelos jogadores convocados. A sua lista saiu
sem nenhuma consulta a qualquer membro da cúpula da CBD. Alterar essa relação
(fato que pode acontecer depois das eliminatórias) é função exclusivamente sua.
Ninguém se intromete também na escalação do time. Isso, por um lado, significa
dar muita força a um homem só mas por outro evita o trabalho de palpiteiros,
como o sueco Gunnar Goransson, que, vestido com o uniforme da CBD, reunia a
imprensa na Suécia - última exibição do circo antes da Inglaterra - para
declarar: "Na estréia da Copa, o ataque do Brasil deve ser este: Jair,
Alcindo, Pelé e Amarildo. Mas Amarildo não está bem e há possibilidade de Pelé
entrar na ponta-esquerda".
Desembarcando em Madri, onde a delegação tinha chegado voando pelo mesmo
DC-8 "Bandeirante Manuel de Borba Gato", que havia levado a Seleção à
Suécia em 1958 e ao Chile em 1962 (pilotado pelo mesmo Capitão George Bungner,
que, como das vezes anteriores, foi obrigado a deixar crescer barba e
cavanhaque), João Havelange declarava: "Ninguém está mais preparado do que
nós. No dia da estréia em Liverpool, teremos uma bagagem de trinta
jogos-treinos. Nenhuma equipe começou a trabalhar tão cedo quanto o
Brasil".
Entre a sentença de Havelange e uma frase de Pelé, ainda em Madri,
depois do jogo Brasil 5, Atlético 3, havia a diferença da teoria para a
prática: "A verdade é que ainda não temos uma seleção base".
Da Espanha, passando pela Escócia, a Seleção chegou à Suécia para um
festival de jogos. Sempre acompanhada por uma multidão de cartolas,
especialistas em dar festas (uma delas no próprio hotel em que os jogadores
estavam hospedados, à qual eles não puderam comparecer, assim como não puderam
dormir por causa do barulho).
Na Inglaterra, para os jogadores, a Comissão Técnica reservou um hotel
pequeno e feio, que não ficava perto nem do campo de treino, nem do campo de
jogo. Enquanto isso, João Havelange, acompanhado de vários cartolas,
hospedava-se no mais luxuoso hotel de Manchester.
De 1966 a 1969, a mentalidade dos cartolas pode não ter mudado muito.
Mas já experimentou uma evolução até certo ponto animadora: em Assunção,
Antônio do Passo, chefe da delegação, prontificou-se a dormir no quarto de
menor conforto da concentração, no Residencial Bonanza.
O jornalista Armando Nogueira cita o jogador Gérson como exemplo da mudança
do Brasil de 1966 para o de agora: "Há uma diferença brutal entre o
Gérson, jogador consciente de hoje, e o Gérson, rebelde e inconseqüente de
1966. O homem é o mesmo. O ambiente é que mudou". A responsabilidade de
Gérson parece ser a responsabilidade de todo o time: eles estão decididos a
ganhar a Copa do Mundo. E como sabem que sem preparo ninguém ganha a Copa - é
ainda Armando Nogueira quem diz -, todos se esforçam. Uma prova disso é que, em
termos de condição física, a Seleção está perto da perfeição. Na tática, o
próprio Saldanha confessa que seu time não tem nenhuma inovação: "Futebol
moderno é simples. Porque o ataque goza da vantagem da iniciativa, de chegar à
defesa com a bola dominada, de contar com jogadores mais habilidosos, é preciso
ter mais gente para defender. É isso que tento fazer. Em conseqüência, a
necessidade de marcação é absolutamente importante. É básico, então, ter mais
jogadores na defesa e menos no ataque sem perder o poder ofensivo. Para os que
pensam que isso é uma contradição, digo que meus homens de ataque são Jair,
Tostão, Pelé e Edu. Não concordo com os que dizem que a linha de zagueiros
continua burra, ou mais burra ainda. É que para muitos só existe o líbero
quando ele pode ser visualizado. Acontece que nesta Seleção o líbero pode tanto
estar atrás, como pode estar dando cobertura a Rildo ou a Carlos Alberto, nas
laterais. É uma simples equação matemática: se o adversário ataca com três e
você tem quatro para defender, é lógico que sobra um". Saldanha pode lutar
por suas idéias com todo entusiasmo, mas nos seus contatos com os jogadores tem
mostrado uma qualidade fundamental: não força ninguém a decorar sua cartilha.
Durante os jogos, diz suas observações e aceita as sugestões dos jogadores (o
que é um meio de fazê-los mais responsáveis pelo resultado). Definiu tudo numa
frase: "Nas vitórias, ou nas derrotas, a participação do técnico é apenas
de 10%. Os outros 90% são mesmo dos jogadores, que parecem estar atingindo
agora o mais alto grau de sua consciência profissional, num reflexo dos
campeonatos regionais, onde os times dirigidos profissionalmente sempre ganham
(Santos, Cruzeiro, Botafogo, Grêmio, Bahia)". O jogador de futebol deve
ter compreendido que não é apenas o título mas o seu próprio futuro que entra
em jogo numa Copa do Mundo. E essa profissionalização chegou à própria cúpula
do futebol brasileiro, que prometeu aos jogadores a cota do jogo com o
Atlético. Humildes, às vezes mergulhados até num estranho silêncio, os cartolas
têm-se colocado no seu devido lugar, isto é, de lado.
Tudo irá bem e terminará bem, se ninguém sofrer uma recaída.